Nos deslocamentos que faço pela cidade de
São Paulo, há tempos venho consolidando no meu espírito a convicção de quão
artificial é o fenômeno que enche as ruas de mendigos.
Não me
esqueço de que esses são o “xodó” do Padre Júlio Lancellotti, o qual, pese seu
empenho em dizer que quer acabar com a pobreza, no fundo estimula o crescimento
e a manutenção dessa população de rua pouco propensa ao trabalho, transformando
as cidades num teatro grotesco que facilita ao mesmo Pe. Lancellotti manter
suas pregações “contra a fome e a miséria”, tomando-as como pretexto para sua
arenga comuno-humanitária.
Recordei-me, então, de um artigo de Dr. Plinio
Corrêa de Oliveira na Folha de S. Paulo de 26/11/1982, que descasca,
indiretamente, essa trama grotesca da Teologia da Libertação. O título é “E o
mendigo tem razão”. Ele mostra o tipo humano de mendigo numa civilização
católica, sem revolta e completamente oposta à visão progressista. Eis alguns
trechos desse artigo.
* * *
Nesses nossos anos de confusão, o mais das vezes os
fatos influenciam muito menos pelo que são do que pelo que parecem ser. E eles
parecem ser conforme os apresenta a propaganda.
[...]
Fecho os olhos para refletir. E como há pouco girei
muito largamente de automóvel pelas ruas [de São Paulo], não é de espantar que
me venha ao espírito uma multidão de figuras humanas. [...]
Trata-se de gente estandardizada pela vida moderna
das grandes cidades industrializadas. Mais ricos uns, outros menos, vão-se
fundindo ao ritmo da máquina. [...]
Neste torvelinho estão engajados até os nababos. E
também a eles esse sistema de trituração de almas alcança e reduz
psicologicamente ao pó da mentalidade comum. Esforços para evitar a fome os há
muitos e, sem dúvida, com algum sucesso. Por exemplo, vão rareando sempre mais
os tipos do gênero dos que passarei a descrever por pena de terceiros. [...]
A rútila descrição não é minha, mas de [Antero de
Figueiredo], um escritor português que alcançou em seus dias gloriosa nomeada.
Leiamo-lo: “À porta de uma tenda [loja], apanhando os últimos raios de sol a
descer, e sentado na terra, um mendigo de estrada come numa lata seu caldo
esmolado. É uma figura de doido de fome: face escaveirada, olhos em desvairo,
grenha densa de cabelo em pé. As cordoveias [veias e tendões salientes] do
pescoço são de ferro negro, como o são os ossos das clavículas inteiramente
escarnadas. Cobrem-no farrapos cosidos [costurados] em farrapos. Nas pernas,
umas como que polainas de tábua, atadas com guitas [cordões], lembram os feixes
de varas dos litores romanos; e pelos buracos das alpercatas a desfazerem-se
saem os dedos negros dos magríssimos pés. Nas mãos, só pele e osso, segurando
em garra a escudela [tigela de madeira] e a colher de estanho, desenham-se as
falanges e os nós dos dedos como os de um esqueleto articulado. “Ah, os
mendigos espanhóis! O lápis trágico de Gustavo Doré, na sua viagem em Espanha,
desenhou alguns desses espectros de fome, envoltos em capas de farrapos e
cobertos
Continua Dr. Plinio: Quanto poder evocativo, quanta
riqueza de análise, quantos escachoantes coloridos na descrição! Saliento no
quadro, a meu ver mais próximo do real do que se fosse pintado a tinta, um traço
que o grande Antero soube deixar bem claro, porém não incluiu na condensação de
seu parágrafo final. É a riqueza de personalidade, a força de alma, a
elevação de vistas, em síntese, a verdadeira fidalguia de estilo, que existe a
par da “humildade” e da “resignação” de coração, neste gigantesco “pobrinho de
Jesus Cristo” que ele tão bem soube observar e descrever. Heroicamente de
pé no próprio âmago de seu infortúnio, verdadeiro “caballero” da melhor cepa
espanhola e cristã, este homem resplandece de nobre originalidade. Não hesito
em acrescentar que também de augusta respeitabilidade. Mendigo de corpo, ele
é um creso [Rei da antiguidade]de alma. E aos meus olhos, novamente
cerrados, voltam as inúmeras caras mais ou menos nutridas, apressadas e aflitas
que encontrei hoje ao longo de meu caminho. Como são pobres daquilo em que
este pobre é tão rico!
Quem ainda entenderá tal, nestes tristes dias de
banalidade neopagã! Nestes dias confusos, em que até a solicitude de tanta
gente na Igreja parece tantas e tantas vezes confinada – com censurável
exclusivismo – ao campo da matéria, com descuido dos tesouros de alma
sobrenaturais e naturais que lhe incumbe distribuir a mancheias aos homens, os
quais curtem a vida neste Saara espiritual de nosso fim de século…”
Aqui termina o artigo de Plinio Corrêa de Oliveira.
Terminemos também nós este artigo com uma lamentação:
“Pobres moradores de rua de nossos dias!” Bem
alimentados por ONGs, carregados o mais das vezes de andrajos sujos e sem
aprumo, e – pior ainda – embalados nos braços de um líder progressista que os
intoxica com o espírito de revolta, vagueiam sem rumo como tristes órfãos de
valores de alma e de espírito, valores esses que encontrariam no regaço da
Santa Igreja Católica Apostólica Romana de antes do Concílio...
Que Nossa Senhora de Fátima, que há 50 anos
manifestou seu desagrado ao mundo através do milagroso pranto de sua imagem
peregrina em Nova Orleans, Estados Unidos, tenha pena dessa humanidade que peca
continuamente, enviando-lhe graças especiais que a tire da mendicância
espiritual em que nos encontramos.