sábado, 2 de julho de 2022

E o mendigo tem razão

 

Nos deslocamentos que faço pela cidade de São Paulo, há tempos venho consolidando no meu espírito a convicção de quão artificial é o fenômeno que enche as ruas de mendigos.

Não me esqueço de que esses são o “xodó” do Padre Júlio Lancellotti, o qual, pese seu empenho em dizer que quer acabar com a pobreza, no fundo estimula o crescimento e a manutenção dessa população de rua pouco propensa ao trabalho, transformando as cidades num teatro grotesco que facilita ao mesmo Pe. Lancellotti manter suas pregações “contra a fome e a miséria”, tomando-as como pretexto para sua arenga comuno-humanitária.

Recordei-me, então, de um artigo de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira na Folha de S. Paulo de 26/11/1982, que descasca, indiretamente, essa trama grotesca da Teologia da Libertação. O título é “E o mendigo tem razão”. Ele mostra o tipo humano de mendigo numa civilização católica, sem revolta e completamente oposta à visão progressista. Eis alguns trechos desse artigo.

* * *

Nesses nossos anos de confusão, o mais das vezes os fatos influenciam muito menos pelo que são do que pelo que parecem ser. E eles parecem ser conforme os apresenta a propaganda.

[...]

Fecho os olhos para refletir. E como há pouco girei muito largamente de automóvel pelas ruas [de São Paulo], não é de espantar que me venha ao espírito uma multidão de figuras humanas. [...]

Trata-se de gente estandardizada pela vida moderna das grandes cidades industrializadas. Mais ricos uns, outros menos, vão-se fundindo ao ritmo da máquina. [...]

Neste torvelinho estão engajados até os nababos. E também a eles esse sistema de trituração de almas alcança e reduz psicologicamente ao pó da mentalidade comum. Esforços para evitar a fome os há muitos e, sem dúvida, com algum sucesso. Por exemplo, vão rareando sempre mais os tipos do gênero dos que passarei a descrever por pena de terceiros. [...]

A rútila descrição não é minha, mas de [Antero de Figueiredo], um escritor português que alcançou em seus dias gloriosa nomeada. Leiamo-lo: “À porta de uma tenda [loja], apanhando os últimos raios de sol a descer, e sentado na terra, um mendigo de estrada come numa lata seu caldo esmolado. É uma figura de doido de fome: face escaveirada, olhos em desvairo, grenha densa de cabelo em pé. As cordoveias [veias e tendões salientes] do pescoço são de ferro negro, como o são os ossos das clavículas inteiramente escarnadas. Cobrem-no farrapos cosidos [costurados] em farrapos. Nas pernas, umas como que polainas de tábua, atadas com guitas [cordões], lembram os feixes de varas dos litores romanos; e pelos buracos das alpercatas a desfazerem-se saem os dedos negros dos magríssimos pés. Nas mãos, só pele e osso, segurando em garra a escudela [tigela de madeira] e a colher de estanho, desenham-se as falanges e os nós dos dedos como os de um esqueleto articulado. “Ah, os mendigos espanhóis! O lápis trágico de Gustavo Doré, na sua viagem em Espanha, desenhou alguns desses espectros de fome, envoltos em capas de farrapos e cobertos com largos feltros esburacados, mantendo, no entanto, através da maior miséria, um tal aprumo que dirse-iam serem Grandes de Espanha ou senhores de Bazan a quem as maiores tempestades da vida, arrastando-os à última miséria, obrigando-os a estender a mão à esmola, não conseguem desverticalizar-lhes a espinha orgulhosa. E como a arte é um sol que tudo doira, esses frangalhos, nas mãos do desenhista das visões, do negrume e da luz, tomavam aspectos de grandeza. “Os pobres espanhóis são trágicos! Sua miséria uiva, seu aspecto é pavor. Mas um halo de beleza cerca a cabeça deste desventurado: – a humildade, a resignação de toda sua figura. Trapo humano, pobrinho de Cristo, crê, Jesus sorri para ti!” (Antero de Figueiredo, “Espanha – Páginas galegas, leonesas, asturianas, vanconças e navarras”, Livraria Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, 1923, pág. 400-402)”.

Continua Dr. Plinio: Quanto poder evocativo, quanta riqueza de análise, quantos escachoantes coloridos na descrição! Saliento no quadro, a meu ver mais próximo do real do que se fosse pintado a tinta, um traço que o grande Antero soube deixar bem claro, porém não incluiu na condensação de seu parágrafo final. É a riqueza de personalidade, a força de alma, a elevação de vistas, em síntese, a verdadeira fidalguia de estilo, que existe a par da “humildade” e da “resignação” de coração, neste gigantesco “pobrinho de Jesus Cristo” que ele tão bem soube observar e descrever. Heroicamente de pé no próprio âmago de seu infortúnio, verdadeiro “caballero” da melhor cepa espanhola e cristã, este homem resplandece de nobre originalidade. Não hesito em acrescentar que também de augusta respeitabilidade. Mendigo de corpo, ele é um creso [Rei da antiguidade]de alma. E aos meus olhos, novamente cerrados, voltam as inúmeras caras mais ou menos nutridas, apressadas e aflitas que encontrei hoje ao longo de meu caminho. Como são pobres daquilo em que este pobre é tão rico!

 É bem verdade que, se a qualquer desses açodados e estandartizados personagens do século XX [XXI] se oferecesse de ser este sublime mendigo, eles recusariam horrorizados. Para eles riqueza de personalidade, elevação de vistas, privilegiada força de alma, originalidade pessoal, respeitabilidade venerável, tudo isto vale menos do que uma vidinha calma, estável, farta. Ou então um vidão folgado, lauto e desanuviado. Mas, se se oferecesse ao mendigo perder todos os seus tesouros de alma para ser um homem padrão da imensa e monótona colmeia contemporânea, com quanta indignação ele o recusaria. E, a meu ver, a opção do mendigo seria a certa. Só ela estaria verdadeiramente consoante com o senso católico. O mendigo é que teria razão.

Quem ainda entenderá tal, nestes tristes dias de banalidade neopagã! Nestes dias confusos, em que até a solicitude de tanta gente na Igreja parece tantas e tantas vezes confinada – com censurável exclusivismo – ao campo da matéria, com descuido dos tesouros de alma sobrenaturais e naturais que lhe incumbe distribuir a mancheias aos homens, os quais curtem a vida neste Saara espiritual de nosso fim de século…”

Aqui termina o artigo de Plinio Corrêa de Oliveira. Terminemos também nós este artigo com uma lamentação:

“Pobres moradores de rua de nossos dias!” Bem alimentados por ONGs, carregados o mais das vezes de andrajos sujos e sem aprumo, e – pior ainda – embalados nos braços de um líder progressista que os intoxica com o espírito de revolta, vagueiam sem rumo como tristes órfãos de valores de alma e de espírito, valores esses que encontrariam no regaço da Santa Igreja Católica Apostólica Romana de antes do Concílio...

Que Nossa Senhora de Fátima, que há 50 anos manifestou seu desagrado ao mundo através do milagroso pranto de sua imagem peregrina em Nova Orleans, Estados Unidos, tenha pena dessa humanidade que peca continuamente, enviando-lhe graças especiais que a tire da mendicância espiritual em que nos encontramos.